Christiania, algum dia de Janeiro.
– Você já passeou em algum lugar de Copenhagen?
– Ainda não…
– Vá à Christiania, mas vá conhecer durante o dia.
Ao ouvir essa recomendação pela oitava vez cheguei à conclusão: estava na hora de conhecer a tal Christiania.
Não tinha ideia do que era, onde era o que havia de especial. E para você, Capitão Óbvio, que está questionando o por quê de eu não ter pesquisado no google, eu simplesmente ainda gosto de ser surpreendida pelo belo da vida, sem antecipar os fatos da vida real com a virtual.
E assim no meu terceiro dia na Dinamarca, meio perdida, fui levada à Christiania pelo Marco, que insistia que a graça era durante o dia. Embora eu sentia que o passeio me renderia bons momentos, independente da luz do sol.
Enquanto chegávamos, fui apreciando a maravilhosa vista no caminho: Christianshavn. Uma área linda do outro lado da ponte, que antigamente era um porto e hoje abriga casinhas coloridas e pessoas simpáticas na rua.
O frio tomava conta. Paramos para tomar um café, batemos papo, perdemos a hora. Numa cidade na qual o sol se põe às 16:00, qualquer minuto gasto faz toda diferença. No nosso caso havia anoitecido. Porcaria, acabou a graça dessa Christiania…
… só que não. Insisti ao Marco e partimos para lá mesmo assim. Fui advertida que não me assustasse, nem que sentisse medo, Christiania era um lugar meio estranho, mas não era perigoso.
Entramos em um local escuro, no qual era rodeado por muro – sim, isso surpreende em um país que isso quase não existe. Não dava para ver direito o que acontecia, sem energia elétrica, me sentia no submundo de Gotham City: névoa, escuridão, algumas fogueiras em que pessoas se aqueciam em volta e um cheiro estranho no ar…
… entramos em um celeiro gigante, que funcionava como armazém – ou mais para um “topa tudo” no Brasil – e era comumente frequentado por alunos de Design e Arquitetura procurando materiais para trabalho. Ouvi sobre a história daquele local e fiquei fascinada…
… Quis logo então levar os garotos para fazer parte daquilo que, por mais ultrajante que fosse, ainda é um dos lugares que os jovens dinamarqueses mais têm orgulho de apresentar aos visitantes daquele país.
Após finalmente haver um dia ensolarado, seguimos para aquele lugar peculiar numa tarde alegre de Domingo. Todos encantados com Christianshavn que, por mais que fosse um bairro antigo, era possível ver a massiva presença de jovens passeando entre o colorido daquela região. Para chegar ao nosso destino final, me guiava pela imponente Igreja com uma enorme espiral de ouro que tocava um sino incrivelmente macabro e encantador.
À medida que nos aproximávamos, os prédios assumiam cores sérias e o Gui ficava impressionado com a influência do Bauhaus naquelas construções. Logo na esquina, sem nenhuma placa nem aviso, apenas o muro e uma enorme pintura na parede com fadas e cogumelos.
O que mais parecia uma entrada para um parque de diversão excêntrico era o portal de Christiania. Antes de entrar adverti que câmeras e celulares deveriam ser guardados, o uso desses eram proibidos e regra primeira para entrar naquele local.
Mas afinal, o que era Christiania? Aquela região portuária havia sido por décadas a moradia de soldados que lutaram na guerra contra a Suécia e estes, após um tempo, receberam melhores moradias e mudaram-se dali. Na década de 1970, os Hippies ocuparam aquelas moradias, juntaram dinheiro, compraram do governo dinamarquês aquela região e declararam independência da Dinamarca (e União Europeia!). Também conhecida como “Freetown”, a maior comunidade hippie na Europa, possui moeda própria, hino, bandeira, presidente e aproximadamente 1.000 habitantes – claro que não são completamente autossuficientes, ainda dependem do governo dinamarquês -, a economia interna se mantém e gira basicamente em torno da venda livre (embora ainda que proibida pela Dinamarca, mas pouco regularizada naquele local) de maconha e haxixe… estava explicado o cheiro estranho do primeiro dia. Na rua principal, a Pusher St. (isso mesmo, Rua dos Traficantes!), pode-se comprar livremente a droga em diversas formas.
Mas Christiania não surpreende apenas pela venda e consumo livre de drogas. Logo que entramos, houve aquele choque de sair das ruas limpas e impecáveis de Christianshavn ao andar pelas ruas de terra daquela Cidade Livre. Grandes prédios velhos, cheios de pinturas, cartazes e frases politizadas e um convite à fraternidade. Carros são proibidos e os próprios moradores constroem suas bicicletas.
Quem mora ali é por amor aos seus ideais e não é tão fácil assim: o “país” está lotado e há uma enorme fila de espera para conseguir um lugarzinho por ali. Além disso, todas as decisões são tomadas em conjunto pela comunidade, portanto, o morador em potencial precisa passar por aprovação geral.
Três capiais do norte de minas, roedores de pequi e bebedores de cachaça, ficamos meio constrangidos com a venda e o uso de drogas abertamente pelas ruas – Christiania também é conhecida por Green Light District – e por nenhum de nós ser usuários, nem curiosos, preferimos nos afastar para apreciar no lago o pôr-do-sol mais belo que vi em toda a viagem.
Após ver peruanos, dinamarqueses, árabes e passar por templos Hindus, Hare Krishna e até uma miniatura do Cristo Redentor em uma grande mistura de cultura que fui entender porque todos têm orgulho daquele lugar…
… Christiania não é sobre drogas. É sobre união, senso de comunidade. É relembrar quem somos, onde estamos e para quê viemos: manter a fraternidade e união. É sobre tolerância, aceitar diferenças e acima de tudo respeitá-las. É provar que diferentes povos e religiões podem viver harmoniosamente no mesmo lugar, sem um querer impor a cultura sobre o outro. Que o mundo pode ser um lugar melhor e pacífico.
Obrigada, Christiania!
Obs1.: não usamos drogas nem fazemos apologia, apenas respeitamos o ser humano independente de suas escolhas.
Obs2+1.: Christiania tem uma história super longa e muito interessante, como alguns problemas também. Aos que não tem a oportunidade de ir conhecer vale a pena dar uma pesquisada!